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Friday, February 4, 2022

CARTA A UM ESTUDANTE

CARTA A UM ESTUDANTE

CARTA A UM ESTUDANTE

"Cuiabá, 27 de novembro de 2005.

Meu caro jovem e neto Hernani Zanin Junior,

li suas duas cartas. A primeira intitulada ‘Belo comentário’, abordando uma questão jurídica de que tratei e que envolve os contratos de leasing. A segunda, tratando do tema ‘O poder da ignorância’, abordando a deficiência do sistema de ensino nesse nosso País. Embora tais matérias não se confundam, entendo que, numa visão mais ampla, elas se complementam, elas se fundem. Para tanto, bastaria apenas inverter a nomenclatura atribuída à segunda, para onde se lê ‘O poder da ignorância’, leia-se ‘A ignorância do poder’. Satisfeito esse pressuposto, temos então esses dois pensamentos traduzindo e relevando o estágio atual da sociedade brasileira. Temos mais... Temos a real divisão dos poderes da República, permitindo introduzir, no clássico e inócuo conceito Judiciário, Legislativo e Executivo, o verdadeiro poder que norteia a sociedade: o Poder Econômico, meu neto. É ele que dita e impõem regras de comportamento, que bloqueia as aspirações individuais dos membros que compõem a sociedade, que interfere com grande facilidade no Legislativo, exigindo e logrando obter aprovações de Leis especiais, nitidamente para favorecê-lo. É esse mesmo Poder Econômico que atua com desenvoltura no poder Executivo e lamentavelmente no próprio Poder Judiciário. Vamos então, com todas as vênias, fundir as suas duas cartas, buscando as consequências que decorrem dessa verdadeira dilaceração.

           Percebe-se claramente, Júnior, o temor que lhe inspira o estado atual da sociedade brasileira, até porque é você quem afirma: ‘... a educação no Brasil anda em grande retrocesso, num grande descompasso entre o que é e o que deveria ser’. A par da gravidade da colocação, que nada mais é senão um libelo acusatório, percebe-se que você vê algo de errado, sabe que existe um erro, mas não o identifica. Vou lhe dizer, não com a intelectualidade que se presume em um advogado, mas com a ignorância de um fazendeiro.

           Com efeito, não é só a deficiência na educação que encerra esse mecanismo de subjugação moral, social e financeira do povo. Há algo mais. Embora rudimentar, há o conceito de que o índice moral da população está extremamente baixo. A grande maioria, aquela que tem fome, pensa diferente do abastado. Embora entenda que o Estado seja a origem de todos os males, a deficiência na educação de um povo não obsta a eleição de um parlamentar, ou de um governador, ou ainda de um Presidente da República que tenha essa limitação. Ascender ao poder com flagrante deficiência intelectual - Lula - não se constitui fator negativo, assim como o excesso de intelectualidade - Fernando Henrique - não recomenda política social justa e humana. O líder, assim feito pelo povo, não necessita estar imbuído de grande intelectualidade. É bom que tenha, mas isso não se traduz em necessidade absoluta. Indiscutivelmente, bons estadistas portaram grande deficiência intelectual, como, por exemplo, Abraham Lincoln, Lech Valessa, entre outros. É da cultura popular que um gênio se aperfeiçoa pelas coisas simples que realiza, pois a genialidade e a simplicidade se completam.

           Nesse passo, portanto, teremos um Legislativo composto de pessoas que receberam a mesma educação do povo que as elegeram; teremos então um executivo pecando pela mesma limitação; e o Judiciário? Além de ser composto por pessoas que receberam a mesma educação dos demais membros da sociedade, está submetido a um sistema patriarcal, cuja consequência é a despudorada repetição de sobrenomes famosos nos cargos que o compõem.

           É fácil para qualquer do povo adentrar em qualquer atividade nos poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário -, mas não é fácil, contudo, compor a elite dominante que o Poder Econômico encerra. Esse é um clube fechado, estritamente fechado. E para o seu exercício não é preciso dispor de excelente retórica, de intelectualidade, de boa educação, pois o seu requisito fundamental é ter dinheiro, apenas dinheiro, em dólar, se possível.

           Não raras vezes, para ascender a um cargo nos poderes Executivo e Legislativo, o interessado necessita apenas da ajuda do Poder Econômico, que financia sua eleição, criando essa estúpida relação de dependência. No nosso País podemos identificar claramente os efeitos dessa dependência. Primeiramente, insta relembrar, que no tempo do Império, as Leis eram feitas em Portugal, para vigorar no Brasil. Como tal, toda Lei de então tinha por escopo proteger a Coroa Portuguesa contra as aspirações dos colonizados, que aos poucos identificavam a nocividade da dependência financeira a que estavam submetidos. Os grandes mártires floresceram dessa demanda, entre eles, o mais importante, Tiradentes, condenado à morte, pela participação no movimento da Inconfidência Mineira. E como a sociedade é dinâmica, por excelência, quem um dia foi “bandido” acaba, pelo mesmo fato praticado, virando herói. Isso nos poderes Executivo e Legislativo é corriqueiro, pois os grandes “bandidos” de 1970, Lula, Zé Dirceu, Genoíno, Brizola, et al, são heróis contemporâneos. Sendo eles, na sua grande maioria, aclamados nas urnas recentemente.

           E são exatamente esses, ajudados pela turma do Mensalão, pela turma dos Sanguessugas e por outros parlamentares igualmente corruptos, que apresentam projetos e fazem as leis. Analisando a men legis em confronto com a inoportunidade das leis aprovadas, tem-se que o legislativo está, via de regra, a serviço do Poder Econômico.

           Com referência aos contratos de leasing, podemos identificar, a olho nu, a força que emana do Poder Econômico. Primeiramente porque, essa espécie de contrato, não encontra supedâneo na Legislação Brasileira. O Código Civil revogado impingia proteção às vendas a prazo e aos contratos de financiamento operados pelas Instituições Financeiras, cuja garantia dessas avenças, além da fidejussória, era a de Reserva de Domínio. Depois, entendeu o Legislador que, para perfeita proteção do Sistema Financeiro, os contratos de financiamento deveriam ser regidos por lei especial e específica, em razão de que veio compor a Legislação brasileira o Decreto Lei 911/69, que cuida da Alienação Fiduciária, em cujo dispositivo incidia a pena de prisão civil àquele que não honrasse as parcelas contratadas e nem devolvesse o veículo, quando, já em ação de depósito, intimado judicialmente, para tal.

           Vale dizer, portanto, que em caso de inadimplemento de obrigação, o devedor era punido com pena privativa de liberdade. Percebe-se a força coercitiva que a Lei consagrava ao Poder Econômico, para realização de seus créditos. Isso tudo contrariando preceito constitucional de que “ninguém será preso por dívida civil”.

           A partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, que limitou a força coercitiva até então atribuída ao Poder Econômico, pois excluiu a prisão do depositário infiel, em relação a negócios jurídicos de contrato de financiamento, cingindo tal preceito apenas ao depositário judicial.

           O Poder Econômico, assim como o garimpeiro acometido da “febre do ouro”, procurou, nessa imensidão que é a legislação brasileira, um meio, igualmente coercitivo, para garantir a realização de seus créditos. Introduzindo-se assim, a partir da Lei 7.132/1983, como Pilatus no credo, o contrato de leasing para as pessoas físicas, em nosso ordenamento jurídico.

           E no que consiste esse contrato? É compra e venda, locação, ou financiamento? Entende a Doutrina, seguida pela jurisprudência dominante, tratar-se de um contrato misto, com elementos da compra e venda, do financiamento e da locação, mas com nenhum deles se confunde.

           Daí porque a dificuldade inicial para execução desse contrato foi evidente, posto que o Estatuto Processual Civil não continha nenhuma norma aplicável à espécie. Primeiramente foi utilizada a ação de busca e apreensão, que não resistiu por falta de pressupostos; depois a ação de Reintegração de Posse, indevida, por falta do requisito insculpido no artigo 927 do CPC, etc. Ademais, esse contrato embutia a previsão de compra e venda, pelo pagamento da VRG, situação que descaracterizava, de plano, a locação.

           Mas a intenção do Poder Econômico ao introduzir essa espécie de contrato na nossa legislação era a de manter sua força coercitiva, ou seja, ele seria sempre o proprietário do bem até a final liquidação do contrato, e, na condição de proprietário, poderia exercer seu direito subjetivo, no caso de inadimplemento, via de regra, com a retomada do bem, independentemente da quantidade de parcelas pagas pelo devedor na vigência do contrato, que eram recebidas como “aluguel” do objeto do Contrato. Embora ainda utilizado, perdeu o Poder Econômico interesse nessa espécie de contrato, pela interpretação que lhe dava os Tribunais do País, dificultando a sua execução, na forma pretendida pelo sistema financeiro.

           Assim, buscou o Poder Econômico nova forma de se autoproteger nas operações que realiza. Se a prisão do devedor inadimplente não era mais possível; se não havia mais a forma de se atacar o devedor inadimplente em seu sagrado direito de ir e vir, “ou paga ou vai preso”, em verdadeiro conchavo parlamentar, buscaram então atacar o patrimônio do devedor, que é outra forma, igualmente cruel, de atingir àquele que por uma ou outra razão, muitas vezes por culpa alheia, deixou de cumprir um contrato.

           Sobreveio, assim, a Lei 10.931/2004, que alterou profundamente o Decreto-Lei 911/69, no que pertine à forma de execução dos contratos de financiamentos, cujas consequências, bem se vê, impôs ao devedor a perda total do bem, cujo conteúdo, aliás, representa um verdadeiro retrocesso contra a ordenação jurídica, ferindo o preceito constitucional da ampla defesa e o próprio contencioso jurídico. Com efeito, a Lei, enquanto imperativa e atributiva, consagra a legalidade do ato que visa proteger, mas nem sempre evidencia a moralidade da atividade que consagra, daí porque “toda lei é legal, mas nem sempre é moral ou justa“.

           A imoralidade da lei ressoa nas entranhas do Legislativo como séria advertência, vindo ela revestida de elementos espúrios da imoralidade, do conchavo, do protecionismo e tudo mais que se tem visto no Congresso Nacional ultimamente. Como, por exemplo, as dotações orçamentárias, que culminaram na compra das famosas ambulâncias; a CPI do Mensalão, que culminou inclusive com a cassação de alguns parlamentares.

           O projeto de Lei 10.931/2004 é de autoria do então Ministro Chefe da Casa Civil, José Dirceu. Diria o recém eleito Deputado Federal Clodovil: E isso pode?

           O homem comum, na interpretação da Lei, busca a regra jurídica que venha dar diretriz às relações examinadas. Pode haver e pode não haver texto legal, mas, em havendo, ele mesmo vale segundo o justo cabimento de sua aplicação. Para o estudioso do direito isso só não basta. Ele vai além, muito além da norma que restou retratada nas letras frias da Lei. A men legis é o que importa. O legislador solitário da Republica velha, quando chegando a São Borja – RS, sua terra natal, vendo as terras de sua família ocupadas por posseiros, em razão do decreto que ele próprio promulgou, criando a primeira reforma agrária conhecida em nossa Historia, enfurecido, bravejou: ‘Lei , ora Lei’.

           São os retrocessos jurídicos-históricos registrados pela evolução da legislação brasileira. Veja, por exemplo, que em 1603, as Ordenações Filipinas, contemplavam em um dos seus escritos, um verdadeiro código de defesa ao consumidor. Dizia no seu Livro V, Tit. LVII: Dos que falsificão mercadorias, que: ‘Se alguma pessoa falsificar alguma mercadoria , assi como cera, ou outra qualquer , se a falsidad , que nella fizer, valer hum marco de prata, morra por isso. Porém não contratando a dita mercadoria, a execução se não fará sem nol-o fazerem saber. E se fôr de valia de hum marco para baixo, seja degredado para sempre para o BRAZIL’.

           No nosso Ordenamento Jurídico, o Código de Defesa do Consumidor, só floresceu no Século XX, através da Lei 8.078/90, ainda assim, bem mais amena que a Portuguesa.

           Com efeito, aqueles comerciantes portugueses, punidos pela segunda incidência do referido artigo, vinham para o Brasil cumprir suas penas, mas vinham na condição de comerciantes, formando aqui a classe burguesa, a elite dominante formadora de opinião, que dominara o Brasil durante o império. A mesma que assistiu e apoiou a escravidão, financiando inclusive o tráfico ilícito de escravos. Aos poucos, pequenos grupos de comerciantes se fundiram, se associaram para exercer o comércio de dinheiro, a forma mais cruel de se participar da produção, primeiramente, através das Casas Bancárias, que só eles – os burgueses - recebiam patente; depois finalmente dos bancos, que nada mais são do que o Poder Econômico, ou seja, legítimos sucessores ideológicos da burguesia infratora de outrora.

           O Poder da ignorância tem raízes nessa mesma burguesia que reinou absoluta em nosso País, por longos 4 séculos. Não interessava a essa elite a educação do filho alheio, pois, os seus tinham cadeira cativa na Universidade de Coimbra. A Ignorância do poder é incompreensível, posto que o Brasil já ultrapassou as barreiras que a falta de cultura do povo encerra.

           Para finalizar, quero dizer que não basta ser advogado, é preciso ser um estudioso do direito; da evolução das Leis; da evolução social do povo, pois só assim você poderá identificar o quanto vagamos no aprimoramento do saber jurídico como dogma das relações sociais. Depois devemos lutar, lutar e lutar pela sua eficácia. E é exatamente isso, que seu avô espera de você.

Abraços,

Pedro Leon."